Justiça determina que a prefeitura paulistana suspenda interdições na Cracolândia

Justiça determina que a prefeitura paulistana suspenda interdições na Cracolândia

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) decidiu na noite desta sexta-feira (18) a suspensão dos bloqueios das estradas da Cracolândia, região central da cidade de São Paulo, onde se concentram inúmeros usuários de drogas.

Os bloqueios começaram ontem de manhã, uma vez que a cidade de São Paulo começou a bloquear algumas ruas da região, colocando cercas para demolição de imóveis na Alameda Dino Bueno e Largo Coração de Jesus, de modo a dar espaço para as obras de construção de casas popular.

Na conclusão, o Juiz Luís Manuel Fonseca Pires, decidiu que o Prefeito Bruno Covas suspendesse prontamente os bloqueios nas ruas afetadas e também quaisquer atividades que impeçam o acesso dos moradores às propriedades, sob pena de explorar possíveis ações de improbidade administrativa.

“Os laudos não são de cadastro na assistência social e assistencial, mas de humilhação e assédio, inclusive de uso ostensivo da Guarda Civil Municipal – em potencial desvio da finalidade das competências da instituição, destacou o juiz em sua decisão, que a pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

A cidade de São Paulo informa que ainda não foi notificada da decisão deste tribunal.

O movimento A Craco Resiste, divulgou nota neste sábado (19), considerando que é a decisão desta cidade. 

“Agora, a cidade, depois de quatro décadas de bombas, se prepara para levar os tratores de volta para a Cracolândia. Uma réplica de 2017, quando os prédios começaram a ser demolidos com pessoas ainda dentro. É urgente reagir contra essa cidade assassina trabalho, que destrói vidas para ganho pessoal “, diz a nota.

O processo foi assinado pelos defensores públicos, Rafael Negreiros Dantas de Lima, Allan Ramalho Ferreira, Vanessa Chalegre Andrade França, Letícia Marquez de Avelar, Fernanda Penteado Balera, Davi Quintanilha Failde de Azevedo.

Relatos da Defensoria Pública na Petição

De acordo com a Defensoria Pública, em maio de 2017, uma megaoperação policial realizada na região da Luz, no Centro de São Paulo – SP, combinada com ações de fiscalização, lacrações, bloqueios e demolições de imóveis, inclusive com pessoas dentro, nas quadras 37 e 38 do bairro de Campos Elíseos, levou a graves violações de direitos das pessoas moradoras e comerciantes das referidas quadras, bem como das pessoas em situação de rua moradoras ou frequentadoras da região conhecida como “fluxo” ou “cracolândia”.

Tratava-se do início de um projeto de revitalização da Luz, realizado pela Prefeitura e pelo o Governo do Estado de São Paulo, que pretendiam, por meio de ações de repressão policial e da implantação de projeto urbanístico, “acabar” com a cracolândia.

Para barrar tais ilegalidades e defender a população impactada pelas ações e políticas da Prefeitura, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou medida cautelar no ano de 2017 denunciando a ocorrência de graves violações a direitos de pessoas em situação de rua, comerciantes e pessoas residentes na Rua Helvétia e adjacências, Centro de São Paulo-SP.

Foi deferido pedido liminar impedindo que a Municipalidade promovesse a remoção compulsória da população envolvida sem disponibilizar quaisquer alternativas habitacionais (fl. 230).

Tal decisão foi confirmada por sentença que reconheceu “ o direito à suspensão de todo e qualquer ato de remoção compulsória de pessoas, bem como bloqueio e demolição de edificações na área delimitada pelas Alamedas Nothmann e Cleveland, assim como Avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, até o cadastramento de todas as pessoas removidas para fins de atendimento em saúde, assistencial e habitacional” (fls. 979/983).

O caso sofreu remessa necessária para a 3ª Câmara de Direito Público, que negou o reexame, bem como afirmou que remover as pessoas sem atendimento em políticas públicas.

 “Beira à irresponsabilidade institucional, uma vez que tal conduta acabaria por acarretar crescimento desordenado e migratório dessa situação para diversos outros pontos da cidade, sem qualquer melhora na situação de desamparo dessas pessoas” 

O processo não possui trânsito em julgado, porém, está apto para o cumprimento provisório de sentença.

O dispositivo da sentença é taxativo ao condicionar qualquer remoção ou demolição ao cadastramento de moradores a serem retirados de suas casas, para atendimento habitacional, assistencial e de saúde.

Para instaurar o cumprimento desta sentença, é importante compreender os limites de seu comando, o que nos compele a compreender o que é a atividade de cadastramento.

Este não se limita à mera identificação de famílias e sua enumeração em uma planilha, pois representa a formação de um compromisso público para a execução de uma política pública de intervenção sobre uma população e território.

Na verdade, a identificação da população é parte de uma atividade que implica no desenvolvimento de estudos e diagnósticos sobre o território e população beneficiária, compreendendo as dimensões social, econômica, produtiva, ambiental e político institucional.

Isso possibilita que se compreenda como a intervenção nos Campos Elíseos vai melhorar a qualidade de vida das pessoas, gerando sustentabilidade do empreendimento a ser produzido.

Entender de modo contrário implicaria em aceitar que o Poder Público pode remover pessoas de uma localização fazendo uma simples listagem de famílias, sem estabelecer qualquer concretude para o planejamento que a identificação da população sinaliza.

Não se podem admitir o cadastramento dos moradores para atendimento habitacional por meio de políticas inexistentes como forma de garantia de seu direito à moradia pelo Poder Público, pois o mínimo de efetividade deve ser apresentada em relação ao destino a ser oferecido às famílias.

No final do mês de julho de 2020, o Prefeito em exercício confirmou que a Municipalidade realizará a remoção das famílias das quadras 37 e 38 do bairro de Campos Elíseos, na região da Luz12, no Centro de São Paulo – SP, deixando claro que tais medidas são iminentes.

Caso as remoções venham a se realizar, constituirão graves violações de direitos da população moradora das quadras.

Desde que foi concedida a medida cautelar por meio de liminar impedindo que a Municipalidade promovesse a remoção compulsória da população residente nas quadras 37 e 38 dos Campos Elíseos, a Municipalidade passou a realizar medidas e procedimentos visando à remoção da população.

Como demonstraremos a seguir, tais medidas, no entanto, foram insuficientes para cumprir os requisitos e garantias à remoção das 453 famílias hoje residentes nas duas quadras, já reconhecidos e garantidos por meio de sentença confirmada por acordão.

Na esfera habitacional, a Prefeitura propõe que as famílias sejam contempladas com atendimento provisório, que corresponde ao recebimento de auxílio-aluguel mensal de R$ 400,00, até que sejam contempladas com o atendimento definitivo, ou seja, com a aquisição de unidade de interesse social por financiamento subsidiado nos empreendimentos de interesse social que serão construídos nas quadras, ou com o acesso à unidade de locação social, fora do perímetro de intervenção do projeto. Após este diagnóstico inicial, passaram-se cerca de 02 anos sem qualquer atualização do cadastramento ou do diagnóstico, e sem a realização de reuniões do Conselho Gestor de ZEIS.

Ou seja, o diagnóstico apresentado foi elaborado com base em cadastramento que já está desatualizado – o que torna o próprio diagnóstico desatualizado – e, mesmo em relação a este cadastramento desatualizado, prevê a implantação de empreendimentos habitacionais para faixas de renda que não correspondem às faixas de renda da população atualmente moradora da quadra, excluindo-os do acesso às unidades que serão construídas, e, ainda, prevê como alternativa para as famílias não contempladas nessas unidades, o atendimento por meio de políticas públicas habitacionais atualmente inexistentes – a política de locação social.

Diante da manifestação da COHAB e da Municipalidade nas ações de desapropriação solicitando urgência nas imissões na posse, em junho de 2020, os conselheiros do Conselho Gestor de ZEIS se posicionaram publicamente, e exigiram explicações, já que fazia mais de um ano que o conselho não era convocado para discutir a intervenção nas quadras. Assim, no dia 16 de julho de 2020 foi realizada reunião extraordinária do conselho gestor da ZEIS das quadras 37 e 38.

Na oportunidade, representantes da Prefeitura informaram que foi realizada nova identificação de famílias em março de 2020, quando encontraram apenas 58 das 190 cadastradas em 2017, ainda residindo nas Quadras 37 e 38, sendo que apenas 117 compareceram para atualização cadastral.

Além disso, informaram que outras 375 famílias que não haviam sido cadastradas, foram arroladas e identificadas durante a mesma ação, atualmente residindo nos imóveis que serão desocupados.

Na ata da reunião, a agente da Prefeitura esclareceu “que o compromisso da Secretaria de Habitação é destinado a estas 190 famílias cadastradas e as 375 famílias identificadas durante a ação de arrolamento neste ano serão atendidas por SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.”

A SMADS oferece políticas voltadas para a população em situação de rua. Com isso, a Prefeitura está admitindo que irá remover 375 famílias sem atendimento habitacional, as quais passarão a ser consideradas como população em situação de rua.

A Defensoria pública resume a situação das famílias identificadas pela Prefeitura no quadro-síntese abaixo:

O atendimento à integralidade da população impactada pela intervenção desde o seu anúncio, em maio de 2017 até a sua efetiva implantação deve ser uma premissa.

A prefeitura afirma que apenas 61% das famílias renovaram o cadastramento (117 de 190). Evidentemente, isso ocorreu pois entre a primeira identificação (dezembro de 2017) e a segunda (ano de 2020), se passaram mais de 02 anos.

Para evitar este tipo de problema, é evidente que o cadastro de pessoas deve ser constantemente atualizado até o momento da execução das remoções.

Portanto, a Prefeitura – que já firmou o compromisso de acolher as 190 famílias por meio de Termos de Garantia de atendimento habitacional – deve atualizar seu rol para incluir, também, as 375 identificadas recentemente e conferira todas efetivo atendimento, não apenas habitacional, mas também de saúde e assistencial.

De rigor notar que não basta o simples cadastro: para o integral cumprimento da sentença é imprescindível que do cadastro decorra o efetivo atendimento da população.

Ainda, a Prefeitura não pode ser beneficiada por sua própria morosidade, devendo atender ao comando da presente sentença, sendo impedida de remover moradores do local sem oferecer atendimento habitacional, assistencial e de saúde adequados.

As “Diretrizes de Intervenção: quadras 37 e 38 – Campos Elíseos” apontam que 41% dos moradores entrevistados tem renda de 1 a 2 salários mínimos, enquanto 28% tem até 1 salário mínimo de renda.

Como o atendimento definitivo, em sua grande parte, será feito pela PPP Habitacional, 38,4% das pessoas não seriam contempladas (página 32), dependendo de locação social.

O problema é que não há qualquer demonstrativo de quantas unidades habitacionais serão produzidas para Locação Social nos próximos anos, ao contrário no que se faz na PPP, em que se apresenta a meta de 2.260 Habitações de Interesse Social (HIS).

Frise-se que o fato de existirem pessoas em situação de rua – sem moradia digna – na região dos Campos Elíseos não pode eximir a Municipalidade de arcar com suas obrigações com relação a essa população, até porque a situação de rua decorre do descaso do próprio Poder Público.

Novamente vale repetir que a Municipalidade não pode se beneficiar de sua própria negligência. Ademais, é fato que, mesmo em situação de rua, as pessoas estabelecem vínculos diversos na região em que moram, seja com equipamentos de saúde, seja para fins de alimentação, cultura, ou mesmo vínculos de trabalho.

A ocupação de espaços públicos pela população em situação de rua não é aleatória, se dirigindo para locais em que o mercado não possui interesse. Entretanto, a ocupação vai trazendo um novo simbolismo e significado para estes espaços.

Apesar do desprezo que a cidade lança sobre tais territórios, grupos sociais, especialmente constituídos por populações de classes sociais mais baixas, como as pessoas em situação de rua, passaram a se instalar em tais locais e a utilizar o espaço público como extensão de suas personalidades.

As crises da cidade, especialmente a especulação na utilização do espaço urbano, levaram inúmeras pessoas a ocuparem tais locais e a manifestar sentimentos em relação ao espaço público, como o valor da pertença, o valor emocional, dentre outros.

Não se trata de mera “invasão” do espaço público, mas de ocupação e utilização legítima dos espaços por pessoas que se viram alvo de políticas de higienização social e lograram encontrar um local na cidade em que podem exercer sua cidadania, apropriando-se do espaço público e logrando obter a desejada sensação de pertencimento a um determinado local.

Daí que uma política pública que efetivamente atenda aos interesses da população em situação de rua deve levar em conta todos esses fatores.

Nesse exato sentido, o artigo 4o da Lei n. 8.742/93 elenca, como princípio da política de assistência social, o “respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária” (inciso III).

Assim, considerando o significado que a região sub judiceassume para a população que lá se instalou, é necessária uma resposta digna à demanda habitacional com perspectiva de fornecimento de moradia definitiva, bem como oferta de atendimentos adequados nas esferas da saúde e assistencial. Nesse ponto, vale já desde logo registrar que o número de vagas de acolhimento na cidade de São Paulo é insuficiente para atender a todas as pessoas em situação de rua.

Assim como são também insuficientes os serviços socioassistenciais para atender às inúmeras demandas dessa população. Por isso, afigura-se ainda mais necessária a efetiva garantia de atendimentos habitacionais, assistenciais e de saúde à população que reside na região dos Campos Elíseos, inclusive e principalmente às pessoas mais vulneráveis, que vivem nas ruas.

A Portaria nº 464/2018 do Ministério das Cidades aponta que qualquer intervenção no território deve apresentar no seu plano de trabalho (item 4.4.1):

  • a) identificação da área de intervenção e da população;
  • b) atualização do diagnóstico;
  • c) objetivos definidos, com metas de curto, médio e longo prazo;
  • d) ações e estratégias de execução;
  • e) estratégias de monitoramento;
  • f) orçamento contendo os custos das ações/atividades a serem implementadas, explicitando as fontes;
  • g) cronograma físico-financeiro, contendo o tempo e custo de execução de todas as ações/atividades previstas.

A referida regulamentação é citada na presente pretensão executória, pois serve como importante referência de como o Poder Público deve agir no caso dos Campos Elíseos.

Por meio dela percebe-se como a apresentação da Locação Social como alternativa de atendimento não passa de mera promessa, não representando qualquer cumprimento à sentença.

Um documento que contribui sobremaneira na elucidação das falhas da apresentação da Prefeitura são os questionamentos das diretrizes formulados pelo coletivo Mundaréu da Luz, que representa uma esfera da articulação social em torno do território.

A Defensoria Pública se permitirá a aproveitar o referido documento como parte de seu pedido de esclarecimentos à Prefeitura, nesta pretensão executória.

Por fim, destaca-se o trecho final do Acórdão de fls. 1.107/1.111, que dispõe que:

“Acerta o juízo sentenciante quando suspende ato de remoção compulsória de pessoas e bloqueia a demolição de edificações até o cadastramento de todas as pessoas removidas para fins de atendimento em saúde, assistencial e habitacional.

Isto porque a ausência deste tipo de política, que não causa grande custo ao erário municipal, prima não só pela dignidade dos moradores envolvidos, mas também pela adequação da medida e controle das ocupações irregulares distribuídas pela cidade, o que deve ser feito de maneira integrada entre várias frentes assistenciais e de urbanização, de forma paulatina e não em curto espaço de tempo”.

Importante, também, destacar parte do Parecer da Socióloga Marilene Alberini (anexo), a qual afirma que “enquanto a SEHAB não proceder com esta nova etapa do Trabalho Social, não haverá efetivo avanço da proposta inicial ao projeto definitivo de intervenção, implicando, inclusive, em seu planejamento orçamentário”.

Resta muito claro que não se trata de simples identificação de famílias: a obrigação imposta na r. sentença e confirmada no v. acórdão abrange o cadastramento “para fins de atendimento em saúde, assistencial e habitacional” de todos os moradores da região (aqueles já registrados entre 2017 e 2018 e os atuais residentes), a fim de garantir-lhes o devido reconhecimento de sua dignidade, como sabiamente ponderou o TJSP no trecho do acórdão acima transcrito.